terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

E agora, José?

E AGORA, JOSÉ?

"Se você morresse, mas você não morre..." (Carlos Drummond de Andrade)
por Thiago de Góes
@_thiagoes_

A gravata estava suja de uísque, brigadeiro e suor. Com ela, enlaçou o pescoço e deu o nó que aprendera nos tempos de escoteiro. A outra ponta, amarrou numa estrutura de ferro, no teto do palco. Então pulou da cadeira...

Foi a sétima vez que tentara se matar (Nem se afogar na piscina conseguiu). Achou que o número cabalístico lhe traria um resultado positivo. Qual engano! Até que tudo funcionou bem, o nó, a gravata, o teto, a cadeira. Faltou combinar com a gravidade. O pescoço parecia de aço. Sentiu apenas um leve apertar nos ossos, um sutil incômodo, uma breve falta de ar.

E caiu por cima do violino! Seu corpo franzino espalhou papéis que jaziam numa caixa azul. Dentre eles, a partitura de uma valsa vienense. Já não tinha mais ideia do tempo que estava só, nem do tempo que em vão tentava morrer. Dias, semanas, meses? Que importa agora?

Lembrou-se de quando tudo começou. A banda tocava “I love you, baby”, quando ele sentiu falta da noiva. Foi ao banheiro feminino. Esperou longos minutos na porta. Ninguém saiu. Pediu para uma amiga entrar. Ela entrou e também não saiu.

Decidiu entrar ele mesmo. Aos poucos, foi entrando e chamando pelos nomes da noiva e da amiga. Quando ultrapassou a linha imaginária que dividia as partes de dentro e fora do toilette, ele não acreditou no que viu...

Era uma espécie de passagem secreta e mágica. Num passo, estava no banheiro; no outro, na recepção. Simples assim. Pensou que veria sua noiva na frente do espelho, mas viu apenas o tapete vermelho sob seus pés e dois elegantes garçons servindo vinho tinto, um de cada lado.

A banda ainda tocava “I love you, baby”. Agora, já eram quatro desaparecidos. A noiva, uma amiga, uma tia cadeirante e sua cuidadora. Todas foram vistas pela última vez entrando no banheiro. Já havia um clima tenso na festa...

José chamou um amigo de infância. Sem explicar, pediu que esperasse por ele na entrada da casa. Como antes, entrou no banheiro e saiu na recepção, mas seu amigo não estava lá. Os garçons também não estavam. Ele não percebeu, mas agora os tapetes eram brancos.

Metade da festa estava sumida. Ele teve um insight! Será que a música era o problema? Desde que tudo começou, ela não havia parado de tocar. Foi até o palco. Qual foi sua surpresa: a banda não estava mais lá. Apenas os instrumentos, imóveis no chão. Ainda assim, a música ainda soava pelos ares: I love you, baby... De onde vinha? O que estava acontecendo? Seria um pesadelo?

Tentou gritar, mas não tinha voz. Tentou falar com os convidados que ainda restavam, mas não respondiam e aos poucos foram sumindo, até que não havia mais ninguém na festa!

Lembrou-se de tudo isso, ao lado do violino quebrado e da partitura da valsa vienense. Algum tempo antes, concluíra que estava numa espécie de looping e que a realidade mudava (para pior) a cada vez que entrava no banheiro. Quem sabe tudo voltasse ao normal depois de tantas entradas e saídas? A esperança ainda não havia morrido...

Estava agora na cozinha. Tentou cortar os pulsos, mas não tinha sangue. Tentou chorar, mas não tinha lágrimas. Tentou gemer, mas não tinha voz. I love you, baby. Mas não tinha baby. Não tinha uma pedra no meio do caminho com que pudesse esmagar seu próprio crânio. Não tinha lua de mel, baby, I love you, não tinha nada, apenas dois quadros na parede.

Do lado esquerdo, a pintura de um cavalo negro, alado, voando para a lua. Do lado direito, um homem por trás dos óculos. Ele teve uma ideia. Entrou e saiu na passagem inúmeras vezes. Em cada uma delas, observava a mudança nos quadros. Pouco a pouco, o cavalo ia se distanciando. Pouco a pouco, o homem, já sem óculos, antes sisudo, ganhava uma expressão sarcástica. Sorria com desdém. Os olhos pareciam arder.

José jogou uma cadeira no quadro do homem, que agora parecia cantar: I love you, baby. Cantava e gargalhava! Sem parar. Gargalhava e cantava!

I love you, baby...

5 Thiago de Góes: E agora, José? E AGORA, JOSÉ? "Se você morresse, mas você não morre..." (Carlos Drummond de Andrade) por Thiago de Góes @_thiagoes_ A gravata...

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